Introdução
Diz-se que a medicina é a associação da ciência com a arte. Um bom médico não é necessariamente o estudante que freqüentou a faculdade de medicina. As máquinas diagnósticas e os exames complementares tampouco podem oferecer diagnósticos clínicos sem a participação do julgamento humano. Os dilemas diagnósticos e terapêuticos estão repletos de diferenças sutis somente solucionáveis quando o ser humano possui habilidades para conhecer e reconhecer-se no outro, e não apenas detém o conhecimento teórico.[1] Na medicina atual discute-se amplamente a re-humanização da relação médico-paciente, que perdeu importância diante da tecnologia[2]. Para entender melhor, é importante recorrer à história da medicina que, em seus primórdios, evidenciava a relação médico-paciente como o alicerce para extrair informações que norteavam o saber e a terapêutica da época. Seguiu-se a medicina cientificista do século XIX, ciência “quase exata”, desprezando seu caráter humanista. Atualmente comprova-se que, apesar da tecnociência, a boa propedêutica e a satisfação de ambas as partes dependem muito do bom relacionamento entre o médico e o paciente.
Discute-se também o crescimento da população idosa (maior expectativa de vida e redução da taxa de natalidade). A longevidade demanda não apenas diagnósticos e terapias sofisticadas, mas também tratamentos prolongados e qualificação específica para assistir esta faixa etária.
Entre as relações que albergam mal-estar, a relação médico-paciente tem sido uma das mais estrepitosas[3], resultando em acusações, denúncias, queixas judiciais e junto aos conselhos de medicina. O médico é a peça chave no estabelecimento de um bom clima durante as consultas. Para tanto, deve estar preparado técnica e psicodinamicamente, o que não é alcançado somente nas aulas de semiologia e na breve prática clínica da graduação. Faz-se necessário corrigir este déficit preparatório através do desenvolvimento de práticas e habilidades.
Este estudo visa propor um método pedagógico de resgate da humanização no atendimento médico com ênfase no idoso, através da adaptação de técnicas do Sistema Stanislavski (método utilizado em escolas de teatro).
É mister cultivar no médico interesse pelas condições físicas, psíquicas e sociais dos idosos, encarar o velho não como um ser marginal, mas com peculiaridades que exigem atenção e conhecimento e resultem em condutas adequadas. O crescente resfriamento humano da prática médica é mais evidente quando o relacionamento necessita de maiores doses de carinho, atenção e zelo, caracteristicamente no trato com o idoso, paciente de morbidades e fragilidades físicas e emocionais específicas.
As técnicas teatrais de interpretação, preparo vocal e corporal, improvisação e trabalho em grupo, são de grande utilidade para o auto-conhecimento e melhor trabalho em equipe multidisciplinar, além de grande estímulo para uma continuidade deste processo.
A utilização destas técnicas e jogos teatrais direcionados para a relação médico-paciente resultaria em maior consciência do eu, do outro e do meio, bem como humanização do relacionamento inter-pessoal, valorização da mímica facial e corporal como componentes importantes de comunicabilidade, estudo do foco de atenção, do improviso, da negociação, dos aspectos psicodinâmicos e neurolingüísticos. Objetiva-se assim contribuir para alcançar satisfação pessoal e a excelência na prática clínica.
Neste trabalho é exposta uma comparação entre a consulta médica e uma peça de teatro, a partir da qual aborda-se a técnica teatral utilizada no preparo do ator e sua utilidade para a melhoria da relação médico-paciente. Não serão abordadas as diversas correntes de adaptação do método, mas sim a técnica original de Stanislavski. Não será abordado aqui o conteúdo programático das faculdades de teatro e artes cênicas. Não serão incluídas sugestões de utilização prática (jogos) durante a atividade profissional, mas será proposta adaptação do Método para uso na graduação médica, preferentemente durante o aprendizado da semiologia.
1.1 - O Estigma da Velhice
Vivemos um período de transição demográfica desde 1970, marco inicial do aumento da população idosa no Brasil, quando o país tinha 4,95% de idosos. Esta taxa pulou para 8,47% em 1990 e espera-se alcançar 9,2% em 2010. A Organização das Nações Unidas considera o período de 1975 até 2025 a “Era do Envelhecimento”.[4]
A expressão “terceira idade” é uma designação recente e vem sendo empregada para simular isenção de conotações depreciativas; também para atender a interesses de um mercado de consumo emergente (para o idoso jovem, ainda com boa saúde e tempo livre para lazer e novas experiências).
A velhice é fenômeno natural e social que se desenrola sobre o ser humano, que defronta-se com problemas e limitações de ordem biológica, econômica e sociocultural.
Uma das conseqüências naturais do envelhecimento é a dificuldade de aceitação em diversos meios sociais. Na moradia com familiares mais jovens ocorre o natural conflito entre gerações. No meio externo à moradia, a típica rejeição ao que está “velho”, norma básica da sociedade de consumo exigente de novidades e de perfeição. Desta forma, cresce rapidamente o isolamento dos idosos. A isto se associam a pobreza, devido às aposentadorias irrisórias, e problemas de saúde advindos da coexistência freqüente de múltiplas afecções.
Os idosos possuem demandas específicas para atingir uma razoável qualidade de vida e o envelhecimento já repercute incisivamente nas diversas esferas da estrutura social, econômica, política e cultural. Formam-se movimentos de aposentados e pensionistas, fóruns de discussão, conselhos de direitos e ONGs, lutando pela garantia de direitos e participação na sociedade. Discute-se também o mal-gerenciamento do sistema previdenciário e a marginalização.
O paciente, ao entrar no consultório, busca a cura de sua doença. Chega inseguro, fragilizado e tímido. Por isto, espera por atendimento atencioso, cortês, dedicado, confiável e seguro. O médico deve demonstrar sua importância sem ser arrogante ou dominador. O bom relacionamento estabelecido é o que faz com que o processo a seguir tenha sucesso.
O atendimento geriátrico é definido como um processo multidisciplinar visando abordar o idoso sob os pontos-de-vista médico, psicológico, social e funcional, buscando mantê-lo em sua plena capacidade e autonomia pelo maior tempo possível. Desta forma, a geriatria visa a qualidade de vida, o viver bem e o envelhecer bem. Este atendimento pode ocorrer nos sítios domiciliar, ambulatorial, hospitalar, em cuidados paliativos, unidades de reabilitação, hospital-dia, projetos de extensão universitária, universidade aberta à terceira idade, PSF (Programa de Saúde da Família), grupos de convivência, instituições asilares, organizações não-governamentais e programas pré-aposentadoria.
Há uma grande diversidade de pacientes idosos, espectro que vai do amplamente hígido e independente ao completamente incapacitado e demenciado. No caso do idoso dependente, o médico freqüentemente tem que se relacionar com cuidadores e familiares, ou ainda com pessoal de instituições asilares, desempenhando o papel de interlocutor, comunicador, mediador e, muitas vezes, conciliador.
O médico deve estar preparado para atender idosos com doenças crônico-degenerativas, distúrbios mentais, problemas auditivos e visuais, seqüelas de acidentes vasculares ou limitações de locomoção. E preparado para identificar as diversas formas de envelhecer, de adoecer e de curar-se, das atipias e inespecificidades de apresentação das doenças, apesar de diagnósticos e tratamentos serem generalizáveis. Profissionalmente, isso põe uma barreira ao atendimento. Mais ainda, deve estar preparado para possíveis conflitos, choque de culturas e gerações durante a consulta médica e problemas de ordem ética e legal. Neste caso, a aliança terapêutica, objetivo desta modalidade de relacionamento, apresenta ainda mais barreiras no caminho.
1.3 – Teatralidade Cotidiana e História do Teatro
O teatro é uma espécie de mágica, onde a representação dos atores causa enorme admiração. No momento da representação, o espectador não difere personagem e ator. A cena teatral transporta o público de sua realidade para a irrealidade, traz a proposta de entreter o espectador e faz com que ele sonhe com outra vida diferente da sua, vivenciando situações que não fazem parte de seu cotidiano[5].
A origem grega da palavra teatro, theatron, revela uma propriedade esquecida, porém fundamental, desta arte: é o local de onde o público olha uma ação que lhe é apresentada num outro lugar.[6] Este deslocamento do olhar provoca um novo reconhecimento do que se considera real: a teatralidade. Tempo e espaço desdobram-se em novas formulações, fruto do atrito provocador do binômio teatralidade-realidade, forçando o olhar a percepções novas, criativas e singulares. O espectador de hoje tem a oportunidade de vivenciar a teatralidade tanto quanto o ator, através do uso de máscaras virtuais, o que é um exercício de desinibição.
Nos primórdios do teatro, as máscaras (reais) sempre estavam presentes: na antigüidade clássica, na vida do homem. Utilizando-se delas, o homem via em suas mãos outra realidade, onde ele poderia ser, sem limitações. [7] O uso da máscara como elemento cênico surgiu no teatro grego, por volta do século V a.C., como símbolos da tragédia e da comédia, principais gêneros na época. Durante um espetáculo os atores trocavam de máscara inúmeras vezes, cada uma delas representando uma emoção ou um estado do personagem. Ou seja, máscaras e vestimentas variadas para um único personagem, para as variadas situações ou para representar as mulheres, já que apenas homens podiam ser atores[8]. O ator, para poder viver seu papel numa peça teatral, precisa encobrir suas particularidades. É necessário eclipsar o homem que está representando um papel para que ele possa se identificar com seu personagem. Portanto, apesar de hoje não serem usadas máscaras no teatro, isto só é fato porque todo o trabalho do ator hoje em dia é direcionado ao acobertamento da pessoa do ator, dando lugar à pessoa do personagem, como numa metamorfose.
Ortega y Gasset examina o significado do teatro para a vida humana. Afirma que o homem sempre sentiu necessidade de buscar algo fora de si para encontrar-se. O filósofo fala também da fuga do cotidiano, explicitando que se refere ao cotidiano na forma repetitiva dos atos e não daquele onde o homem cria a sua vida. Partindo do cotidiano, faz suas escolhas, mas ressalta sempre para se ter cuidado com os atos repetitivos, que paralisam o homem impedindo que ele crie nada além daquilo que já foi instituído. Além disto, salienta que o homem sempre se viu angustiado diante da dualidade e do contraste "impotência-onipotência", onde se depara com todas as possibilidades e também com as limitações de sua vida. A arte seria, então, a mais bela forma deste escapismo necessário ao homem, que busca nela uma forma de viver sua vida de forma diferente, livrando-se do cotidiano. No teatro, especificamente, o homem encontra várias formas de representar-se.[9]
A maior parte de nosso tempo de vida nos ocupamos em repetir amanhã o que fizemos hoje. É através da repetição que temos o conforto ilusório de que estamos a salvo de ameaças. Se todos os dias temos o que se espera acontecer ou o que se planejou, ficamos aparentemente bem. Entretanto, existe dentro de todos nós uma indocilidade, uma necessidade de que a rotina seja sempre quebrada. Uma das formas espontâneas disto acontecer no dia-a-dia é a nossa grande tendência à dramatização. Em nossas pequenas situações, especialmente quando um imprevisto acontece, é irresistível deixar de dar proporções trágicas, manifestando cólera, gritando palavrões ou gesticulando exageradamente. Interessante notar que, se estamos sozinhos, normalmente permanecemos em silêncio ou exteriorizamos timidamente nossas reações. Mas se temos companhia (platéia), a dramaticidade naturalmente se manifesta. Do outro lado (da platéia), nosso voyeurismo nos impele a assistir tais situações, pois é através delas que saciamos nossos mais variados desejos, saindo da rotina tediosa.[10] [11]
A semente do teatro está nos ritos litúrgicos e nas cerimônias religiosas, na Índia, Egito, China e Creta. Mas na Grécia, onde a religião era tratada de forma especial (voltada para a vida e não definida à parte dela, além de recheada de mitos e deuses), o teatro assumiu características próximas às do teatro atual. Lá, no século VI a.C., um homem chamado Tépsis vestiu uma túnica e, usando uma máscara e sobre uma carroça, apitou: “eu sou Dionísio!”. Tépsis foi o primeiro mortal que ousou imitar os deuses. A partir daí, o teatro grego passou a se preocupar não apenas com a liturgia pura e simplesmente, mas com o homem e seus problemas cotidianos, dando importância ao belo, à criatividade humana e ao sentimentalismo, buscando também educar, ensinar e evidenciar costumes.[12] [13] Em torno de 400 a.C., a arte já aperfeiçoada gerou concursos para melhores autores teatrais e turnês patrocinadas pelo governo: as Dionisíacas. A encenação, inicialmente feita em carroças, desceu para o palco fixo. Assim, os autores Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, freqüentes vencedores das dionisíacas, deram início a era do teatro. As tragédias gregas representavam um herói em luta contra seu destino, em meio a deuses que recompensavam atos de coragem e puniam rebeldias. O texto era lido artificialmente e a encenação ainda possuía características de um ritual[14]. Comum aos textos e às encenações de tragédias gregas eram a “cegueira da razão” (“até”, negação consciente de um destino líquido e certo) e a catarse.
Paralelamente, em Roma, apesar de proibido pela Igreja, Plauto e Terêncio despontavam como autores de comédias, gênero preferido dos romanos. Ridicularização dos costumes, disfarces, travestimentos, truques, obscenidades e intrigas lotavam os teatros.
Na Idade Média, a proibição do teatro (paradoxalmente, pela Igreja) deslocou os espetáculos apimentados para os feudos. Nestas ricas propriedades, bem como nos castelos, surgiam os menestréis, que eram artistas polivalentes: bailarinos, músicos, poetas, atores, cantores e acrobatas. Eram considerados, entretanto, vagabundos. Àquela época a Igreja utilizava-se das “moralidades”, espécie de encenação em que não havia personagens humanos, mas representações de pecados como a “gula” e a “preguiça”, fantasiados de demônios (máscaras e figurino). O teatro persistia marginalizado na Espanha dos séculos XII e XIII, novamente sobre as carroças, onde eram encenados os autos que pregavam a salvação da alma.
No século XVI, época da Renascença, o homem passou a ser o objeto de interesse dessas artes, e não mais os deuses (ou, no caso da Igreja católica, o Deus). O teatro ressurgiu nos textos de Gil Vicente (Portugal), Calderón de lá Barca (Espanha) e José de Anchieta (Brasil), ainda de cunho moralista. Na França, Inglaterra e Itália surgiam companhias regulares de teatro. Na Itália, especificamente, surgia a “comedia dell’arte” nova forma de teatro que, através do improviso, exibia comédias não-religiosas, onde mocinhas apaixonadas e arlequins arrancavam gargalhadas do povo nas ruas. Os artistas da commedia dell'arte deram à atividade teatral organização profissional, abriram espaço para mulheres no elenco e criaram uma linguagem própria. Os personagens eram arquetípicos: os enamorados, o doutor, o velho (Pantaleone), os criados (Arlequim, Polichinelo e Colombina) e outros. Para caracterizar os tipos, os atores usavam indumentária e máscara próprias de cada personagem. Surgiam, em seguida, Shakespeare na Inglaterra e Molière na França. Molière, em especial, delatava a vulgaridade dos pobres, os falso-devotos e os impostores, sendo toda a sua obra de forte cunho crítico social e político.
No século XVIII ocorre novo afastamento do povo do teatro, devido à moda intelectual espalhada pelos franceses. Às vésperas de 1800, com o surgimento do Realismo Social, o teatro reaparece em meio a uma briga entre os naturalistas e os simbolistas e, desta forma, em todo o mundo.
No século XIX, o teatro vive o esgotamento de sua forma romântica, ilusionista e superficial. Émile Zola (1840-1902) propôs o naturalismo pela primeira vez em 1881, em seu livro “O romance experimental e o naturalismo no teatro”, propondo um palco que tornasse a representação o mais verossímil possível e não causasse estranheza aos espectadores[15]. Desta forma, os conceitos de sonoplastia, gestual, coreografia, iluminação, trabalho vocal e cenografia todos acabaram sendo revistos por diversos encenadores da época, entre eles o Duque Jorge de Saxe Meiningen (Alemanha, 1826-1914), André Antoine (França, 1858-1943) e Otto Brahm, (Alemanha, 1856-1912). Entre diversos encenadores experimentalistas do realismo desta época, um se destacou notoriamente: Konstantin Stanislavski (Rússia, 1865-1938)[16]. Este diretor e teórico também concebia que o teatro deveria ser uma extensão da própria vida e buscava uma perfeita representação, utilizando cenas fotográficas para conferir veracidade ao palco, desde o cenário até ao estilo de representação dos atores. Stanislavski realizou incansavelmente pesquisas com os atores, dando origem a obras nelas baseadas, norteando a idéia do realismo cênico em direção ao teatro tal qual conhecemos hoje. Em sua característica básica, a proposta da estética realista possibilitava que o ator buscasse, no momento exato, a sua memória emotiva na criação teatral. Resultava a partir daí uma empatia entre ator e público, tendo como fundamento a catarse pregada por Aristóteles em sua poética. Cria-se, então, a partir dele e seus seguidores, o teatro nos moldes que temos hoje: forma de representação que dá mais valor à teatralidade do que ao mimetismo. O texto deixa de ter importância única na representação, para ser um dos elementos fundamentais para o espetáculo.[17]
Através dos tempos o teatro sempre esteve presente em todas as culturas, como forma de comunicação e expressão de conceitos, crítica, exposição de novas idéias e mesmo religiosidade. Muitas vezes, o teatro, bem como as outras mídias “teatrais” (cinema, televisão) são a base de comunicação de uma população e até mesmo maior via de transmissão de ensinamentos (papel educador).
Na atualidade vive-se uma busca pelo melhor relacionamento e comunicação apropriada entre as pessoas, seja no âmbito familiar, seja no ambiente profissional. O teatro, uma das artes mais antigas de que se tem conhecimento, é uma das formas mais contundentes de transmissão de idéias[18]. O uso de técnicas de teatro já é utilizado no treinamento de profissionais de recursos humanos e em treinamento de vendedores e executivos. O teatro representa uma ferramenta ótima para ampliar a capacidade de criação e organização de idéias, gerenciamento de situações cotidianas e incremento ao desempenho nas relações de trabalho.
Assim sendo, o estudo do teatro pode se tornar excelente meio dentro da educação e suas técnicas, bem aplicadas, podem resultar em veículo eficaz de aprimoramento pessoal e profissional.
Assim como na vida diária, nos diversos âmbitos sociais, numa empresa um indivíduo é sempre posto em situações que envolvem problemas relacionamentais, seja nas relações hierárquicas, na competição natural entre os colaboradores ou mesmo na conquista de prestígio, reconhecimento e clientes. Saber atuar em coletivo é fundamental para qualquer sucesso relacionamental[19]. Nas empresas, o uso de técnicas teatrais no aprimoramento profissional e pessoal traz sensíveis incrementos ao comportamento dos colaboradores individualmente e em equipe, o que em via final traz melhores resultados financeiros.
Em 1863 o fundador e administrador do Teatro de Arte de Moscou, Konstantin Stanislavski[20] criou um sistema de estudo e prática teatral para que todos tivessem acesso à dramatização. Até então, não havia sistematização da interpretação e os atores aprendiam com a prática ou em manuais que ditavam clichês e manifestações emocionais aconselháveis para cada tipo de personagem. No método[21], Stanislavski propõe a atuação a partir da origem lógica dos sentimentos, resultando numa imagem cênica viva, sobre a base do espírito criador do intérprete.
O sistema é estruturado em duas partes: o trabalho do ator sobre si mesmo (processo criador a partir das vivências) e o trabalho sobre seu papel (estudo histórico, estudo psicológico, caracterização e vitalização do personagem). O resultado almejado é a Verdade Cênica, proposta estética de realismo (atuação o mais próximo do real quanto possível). O “Método”, assim denominado, é utilizado até os dias de hoje.
O Método é composto de itens estudados e praticados separadamente: Fé Cênica (o ator deve acreditar que é e que está, ocupando-se de viver o personagem e manter o senso de verdade, seguindo os desejos que levam à ação, apesar das repetições), Objetivos (feita a análise do texto, divide-se a peça em unidades de ação e procura-se cumprir o objetivo de cada unidade, compondo assim a “partitura do personagem”), Ação Contínua e Ininterrupta (esforço para não perder a concentração e a lógica da ação), Lógica e Coerência dos Sentimentos e Ações Físicas, Tempo-Ritmo Interior e Exterior, Ação Interior e Exterior (o que está acontecendo ao personagem, que pode ser contrário ao que é visto pelo expectador), Circunstâncias Dadas (a proposta do autor e o texto), Se Mágico (improviso e invenção, factíveis de acordo com as circunstâncias), e a Memória Afetiva (o ator busca emoção na sua vivência, podendo usar analogismos).
O ator deve dominar o estado criador, observar e avaliar os próprios sentimentos, criticar a imagem que retrata, criticar a vida, expandir conhecimentos (artes plásticas, literatura), desenvolver o corpo e a voz que são instrumentos físicos de expressão (acrobacia, dança, ginástica, modos de andar, voz, dicção, plasticidade dos movimentos e relaxamento dos músculos). O objetivo final do realismo teatral é fazer com que o espectador vá a um território que nunca percorreu, esquecendo-se de que está sentado numa cadeira desconfortável de teatro (portanto, imobilizado), ao lado de desconhecidos, e seja transportado para o palco, para a cena. Ou seja, trasladado para um lugar que ultrapasse sua consciência. Acontecendo isto, atinge-se a “Criação Subconsciente da Verdade Artística”[22].
O ator, ao receber o texto, deve lê-lo dividindo-o em unidades de ação e cada unidade é definida por um verbo. Cada unidade (conflito) é uma ação ou o acontecimento principal. A partir daí, o ator deve determinar quais são os objetivos do personagem e se estes se opõem aos objetivos dos outros personagens (conflitos intersubjetivos). Deve também perceber se o entorno gera obstáculos e se sua atuação gera contradições internas (conflitos interiores). O médico, identicamente, vê-se diante de conflitos com seus pacientes, com sua secretária, com a realidade social e econômica, assim como seus conflitos internos, familiares, sociais e educacionais. O trabalho sobre estes conflitos, tendo como base o autoconhecimento, procurando solucioná-los ou adaptá-los à prática profissional, certamente desenvolve melhores prática e relacionamento com os pacientes.
Uma vez efetuada a análise, o ator passa para as improvisações e para a luta pelos objetivos do personagem. Desta luta surgem conflitos e inter-relações com os outros personagens e com o entorno, resultando na ação dramática. Paulatinamente, o ator cria seu personagem, transformando-se nele. As consultas médicas são, analogamente, improvisações sucessivas buscando solucionar conflitos (obstáculos e dificuldades no diagnóstico e no seguimento da doença) para atingir o objetivo do paciente: sua saúde com qualidade de vida.
O ambiente do consultório pode ser comparado a uma cena teatral onde temos dois atores assumem papéis principais (dois protagonistas ou protagonista-antagonista) e atores coadjuvantes (familiares, cuidadores, secretária). O palco e cenário são o consultório. Os objetos cênicos são os instrumentos semióticos, o computador, os telefones, a mobília, o cafezinho, a caneta, o receituário. O texto é a doença, o aconselhamento genético ou a solicitação cosmética. Elementos característicos da encenação teatral como o improviso, fé cênica, a ação lógica contínua e ininterrupta, a catarse, a reviravolta e a “Até” (cegueira da razão das tragédias gregas sofoclianas) também estão presentes. A primeira consulta tem em si os mesmos elementos de uma estréia teatral (aquecimento, surpresa, expectativa, medo do desconhecido, fantasmas de fracasso, insegurança e busca da identificação). O médico deve, assim como o ator, dominar seu texto (teoria), o estado criador de suas emoções, observar e analisar seus sentimentos, criticar a imagem que retrata, criticar a vida, expandir conhecimentos, desenvolver o corpo, a voz e o rosto, lidar com as circunstâncias dadas e ver face a face o inesperado. O estado criador[23] do ator é meramente o mesmo estado criador do médico em exercício durante a consulta médica. O médico deve não apenas representar bem seu papel, como também estudar o(s) outro(s) com quem contracena, colocando-se no lugar dele(s) para um ótimo resultado desta cena que é a consulta médica. É de grande utilidade, para uma boa relação médico-paciente, o desenvolvimento destas habilidades, sendo o Método Stanislavski, com suas técnicas e jogos teatrais, de imensa valia para atingir este objetivo.
Em teatro, os jogos são utilizados para atingir o objetivo do auto-conhecimento e do conhecimento do outro e do meio. O jogo teatral é uma proposta de encenação para um grupo de atores, supervisionados por um diretor. Os atores recebem as circunstâncias da encenação (lugar, clima, tempo, objetos) e os objetivos de seus personagens, bem como um objetivo comum. A partir daí estão livres para improvisar, criar falas, movimentos e buscar emoções na memória afetiva. As pequenas histórias criadas pelos atores devem obedecer a critérios: devem ter começo, meio e fim (lógica); devem ser claras, coerentes, plausíveis, possuir expressividades plástica e teatral e demonstrar onde estão e quando estão. Deve haver cooperação entre os atores bem como liderança, criatividade, manifestação sem estereotipias e preconceitos. Por fim, deve convencer o espectador: fazer com que este se sinta participante do que está acontecendo no palco[24].
Os jogos teatrais visam despertar e estimular a desinibição, o pensamento criativo, a autocrítica, o trabalho em grupo, a fala e o comportamento desinibidos, quebrando a tensão muscular e emocional e aprimorando a estética da voz e da expressão corporal.
Curiosamente, um jogo teatral classicamente utilizado nas escolas de teatro é o do “velho
colecionador de relógios”: num grupo de alguns atores, um deles é um idoso avarento que passa os dias tomando conta de sua coleção de relógios até que, um dia, os relógios, representados pelos outros participantes, rebelam-se e matam o velho. Este jogo proporciona ao ator a possibilidade de reprodução das atitudes do idoso, mediante observação prévia (memória afetiva e vivência reproduzida), o que de fato o humaniza em relação ao outro e estimula seu autoconhecimento.1.5 - O Saber Médico: Medicina – e o Saber do Ator: Texto
No programa curricular da graduação, a realidade do envelhecimento raramente é contemplada. Quando o é, ocorre de forma superficial, inadequada ou em tom humorístico. O treinamento em relação médico-paciente é apenas parte integrante das técnicas semióticas, não levando em consideração a abordagem psicológica e sociológica do idoso.
Nas escolas de teatro, a formação do ator consta de três etapas: 1- capacitação para relaxamento, concentração, sentimento e experimento de forma intensa, além do desenvolvimento da voz e do corpo (trabalho do ator sobre si mesmo); 2- trabalho sobre a ação e relacionamento com os outros, caracterização física através de composição de personagens, animais (curiosamente, é clássica a personificação do idoso como laboratório) e abordagem das emoções através da memória afetiva; 3- trabalho em cenas de obras que permitam ao ator exercitar as aptidões adquiridas nas etapas anteriores, dentro de contextos dramáticos pré-fixados (jogos).
No dia a dia, o médico procura basear suas conclusões diagnósticas apenas na breve história que colhe e nos sintomas e sinais que constata. Seria como se o ator se baseasse apenas no texto para compor seu personagem (e, desta forma, não representaria bem seu papel). Mas o ator, além de estudar o personagem de acordo com as características do texto, procura compreender não apenas sintomas, mas sinais e símbolos que ajudarão a desenvolver uma atitude específica e adequada para o melhor desempenho realístico em cena. O equívoco do médico é relacionar-se com o paciente apenas em acordo aos sintomas que este apresenta, e não em acordo com o ser humano que está conhecendo. Portanto, deve desenvolver habilidades para lidar com ele. No relacionamento com o idoso isto ainda se complica mais, pois a senectude geralmente ainda não foi vivenciada pela maioria dos médicos, ou foi vivenciado com parentes de forma abstêmia e conservadora (encarando o idoso como um improdutivo que perdeu seu papel e está apenas esperando a morte, sem ser estimulado ou valorizado).
Outra atitude do ator é fazer a relação entre movimento e ação. O movimento é ação física, e toda ação pode ser executada de várias formas e em vários ritmos. Cada ação física, mesmo a mais simples, pode vir a ser uma estrutura, uma partícula de interpretação perfeitamente estruturada, organizada e ritmada. Do exterior estamos diante de uma coreografia, ou seja, movimentos em um ciclo de ações intencionais. No consultório a coreografia é concebida durante o encontro, como a estruturação de reações na vida. Comumente, o médico não está habilitado a identificar, no conjunto de ações físicas do paciente, elementos que o auxiliem no diagnóstico psico-orgânico e na conduta diante do paciente e de seus familiares[25].
O ator, portanto, parece ser bem melhor treinado e capacitado para relacionar-se com o ineditismo do outro.
2.1 - Tipos de Relação Médico-Paciente
Mediante observação do Professor Robert Veatch, do Instituto Kennedy de Ética (Universidade Georgetown, EUA), existem quatro modelos de relação médico-paciente: sacerdotal (dominação do médico), engenheiro (dominação do paciente), colegial (negociação entre as partes) e contratualista (compromisso entre as partes)[26]. O modelo contratualista é considerado o ideal, ou seja, o paciente deve sair do consultório compromissado com seu tratamento, em concordância com o diagnóstico e a medicação prescrita. Mas para isto, deve-se atingir um saldo progressivo, resultado da resolução do conflito natural de visões (visão técnica do médico versus visão misteriosa e assustadora do paciente). O médico deve ouvir com atenção seu paciente e saber lidar com as visões distintas do adoecer e entender como o doente pensa, colocando-se no lugar dele. Com a prática, isto faz com que o médico conheça as reações dos variados tipos de personalidade durante a consulta e passe a improvisar de acordo com sua memória. Em comparação, o ator vive seu personagem, em outras palavras, “vive no lugar do outro”. No estado criador necessário à encenação, lida com sucessão de conflitos – o texto – e improvisa de acordo com sua memória afetiva. Soluções contratualistas são observadas entre os atores que detém um objetivo comum no enredo. Modelos “engenheiro” ou “sacerdotal”, no teatro, só são observados entre antagonistas.
Em geriatria é trabalhoso atingir o modelo contratualista, salvo em caso de idoso totalmente independente e lúcido. No caso de idoso demenciado e/ou dependente física e financeiramente (idosos regressistas ou perplexos), o modelo sacerdotal acontece naturalmente e é igualmente estimulado pelos familiares, que já exercem este modelo em casa. Em alguns casos, o modelo engenheiro é difícil de ser vencido, especialmente nos casos em que o idoso detém poder financeiro, à exemplo de viúvas de militares de alta patente ou de juízes e desembargadores (idosos moralistas), pelo domínio financeiro que isto representa, ocupando o lugar da perda de papel e poder social, psíquico, de sedução e a queda da auto-estima decorrentes do envelhecimento em si.
O paciente idoso encontra no médico muitas vezes um aliado, um amigo, como contraponto à sua situação familiar e social. Muitas vezes é o médico o único que o ouve e apóia.
É importante para o médico saber reconhecer cada tipo de paciente para uma melhor performance em cada caso (tentando montar o modelo contratualista). Isto só é possível com o auto-conhecimento e com o saber colocar-se no lugar do outro, assumindo posturas adequadas em cada caso (circunstâncias dadas), a escuta e observação intensas e tendo um banco de improvisações pronto para serem postas em ação (memória afetiva e o “se” mágico). Desta forma, procura-se sair do modelo de atenção puramente arbitrária (de origem intelectual) e desenvolver a atenção emocional (interesse na pessoa), tornando-se sensível à influência de todas as informações.
Os estágios que antecedem a consulta médica são semelhantes àqueles, no teatro, que iniciam com a pesquisa no jornal das peças teatrais em cartaz e leitura da crítica, seguindo-se à pesquisa de popularidade com amigos que já tenham assistido a peça e a compra dos ingressos. Atrás da cortina os atores se preparam, ensaiam continuamente, memorizam o texto e fazem as devidas adaptações durante a temporada. O paciente procura um médico de acordo com seus sintomas, pesquisa no livro do plano de saúde, no jornal de bairro ou acata uma indicação de um amigo, marca a consulta e desloca-se ao consultório. Dentro do consultório, o médico estuda, atualiza-se e pratica, adapta-se em resposta às exigências do mercado e da melhor prática.
De acordo com o Método, o relaxamento é a primeira etapa para uma boa representação teatral. Para que se atinja o estado criador, o ator deve estar relaxado, o que não é nada simples numa situação de exposição pública como a vivida em cena. É necessário uma luta contínua contra as tensões que bloqueiam a exteriorização de estados emocionais do personagem. Também deve desenvolver um poder de auto-observação e controle, a fim de eliminar tensões e críticas excessivas que bloqueiem o estado criador. No Método, exercícios de relaxamento muscular, articular e vocal condicionam o ator para que, em outras palavras, desprenda-se da realidade externa para exercer melhor seu papel na encenação. Antes dos ensaios e antes de cada representação, o ator cumpre exercícios vocais e corporais para poder entrar em cena com seu personagem “vivo”. Exercícios como trava-línguas, vocalises, exercícios de articulação vocal e fôlego, de fala monótona, ressonância de graves e de agudos, movimentos amplos do corpo, servem para este fim.
A concentração é a segunda etapa a ser cumprida, pois o ator deve ser um observador atento não apenas em cena, mas também na vida real. Deve concentrar-se totalmente no que lhe atrai, deve observar um objeto não como um transeunte distraído, mas com penetração e crítica, pois ao contrário, seu estado criador não guardará relação com a verdade da vida ou com a verdade da época. O ator deve ser continuamente um curioso e um crítico. Deve registrar de forma permanente, mas não imutavelmente, todas as experiências afetivo-relacionamentais de sua vida, pois serão de total utilidade no palco[27]. Para isto chega mais cedo ao teatro (cerca de duas horas antes), ambienta-se, concentra-se e exercita a voz e o corpo.
No consultório são muitas as forças contrárias ao relaxamento, à atenção e concentração do médico. As interrupções freqüentes, as dificuldades de entendimento por parte do idoso, as intromissões no raciocínio muitas vezes tentando até mesmo manipulá-lo (desprezando o saber médico por preferência pelas verdades populares, por exemplo) e, cada vez mais comum, os deboches e ameaças por parte dos pacientes. Em geriatria ainda há a intromissão de familiares e cuidadores, todos participando para dissolver a lógica contínua do médico. No Método Stanislavski, relaxamento e aquecimento ajudariam a quebrar tensões e fortalecer o estado atento e criador do médico, em analogia à concentração ator antes de entrar em cena ou mesmo antes de ensaiar. Desta forma, desprendendo-se da realidade exterior e inserindo-se no contexto que será sua realidade pelas próximas horas, a representação será verossímil e natural aos olhos dos expectadores.
O médico, ao chegar em seu consultório, insere-se numa cena na qual necessita dos mesmos ingredientes do ator para uma boa performance, pois deve estar desconectado da realidade externa, relaxado e concentrado de modo a não permitir que os outros meios sociais dos quais faz parte, bem como suas outras responsabilidades e julgamentos acerca dos diversos aspectos da vida influenciem na propedêutica. Seu banco de dados, o saber médico, a cultura atualizada ou a vivência comum, devem estar ao sabor do bom-senso imerso em contínua curiosidade criticada.
Nesta etapa, o paciente ainda não conhece seu médico. O instante em que tem início o relacionamento chama-se “hora da verdade”[28]. O médico deve valorizar este momento para conseguir bons resultados com os pacientes e aumentar sua visibilidade fora do consultório (marketing pessoal). Deve deixar clara a importância da presença do paciente em seu consultório e mostrar educação, seriedade e ouvir com atenção. Este é o marco inicial de uma relação eficiente. O paciente não conhece ainda o médico: está diante de um ser inédito e, além de seu objetivo principal (submeter seus sintomas a uma avaliação diagnóstica), exerce a observância dos detalhes do ambiente e de características visuais, de personalidade e profissionais deste estranho. Este primeiro encontro, portanto, é por si só “poluído” por fatores que dificultam ou contribuem para um bom relacionamento, podendo de imediato gerar simpatia ou antipatia – de ambas as partes.
No teatro compra-se o ingresso (marca-se uma consulta). Desloca-se ao teatro e aguarda-se na fila de entrada ou no saguão. Na sala de espera do consultório, à diferença do teatro, parte do “elenco” já é revelada: secretária, faxineira (e aí já é iniciado o relacionamento, através das impressões deste primeiro contato). No teatro, os três sinais sonoros prévios ao início da peça criam apreensão e suspense: no consultório são os pacientes anteriores ou propagandistas da indústria farmacêutica entrando e saindo da sala do médico (estes últimos, gerando certa irritação). Eventual atraso causa inconformidade tanto no teatro quanto no consultório médico.
Enfim abre-se o pano. Do outro lado o cenário, o elenco, elementos de cena (decoração), iluminação, totalmente estranhos ao espectador. Mas quando se abre a porta do consultório, além destes elementos, o paciente é convidado a subir no palco e representar também seu papel, num espetáculo onde as verdades são postas em conflito e necessita-se de pura improvisação mediante as circunstâncias dadas.
Nesta “hora da verdade” há, portanto, o confronto de dois mistérios e o início da busca angustiada por uma identificação que crie a aliança necessária para o sucesso do relacionamento. Nesta fase esta é a maior apreensão do paciente.
A expectativa maior do ator diante de seu personagem é saber qual é seu objetivo: o que o personagem quer e por que quer. Para a solução de cada conflito numa peça, é necessário responder estas perguntas e desenvolver uma motivação contínua, desenrolando a ação dramática coerente e ininterrupta, capturando a atenção dos expectadores.
Assim como existe uma memória sensorial (captada pelos cinco sentidos), existe uma memória das emoções (afetiva). Muitas vezes a memória sensorial evoca a memória afetiva. O ator busca em seu passado pessoal uma situação análoga à que vive seu personagem na ficção, revive esta situação e, uma vez encontrado o sentimento, transporta-o para o presente da encenação. O uso da memória afetiva, no consultório, é de grande valia para lidar com situações novas, porém análogas à situações passadas.
Exercícios de improvisação, de caracterização de personagens e de animais, de vivência de estereótipos e arquétipos, portanto, são de grande utilidade para que o médico tenha melhor desempenho nesta fase inicial. No teatro utiliza-se para esta finalidade exercícios de simulação corporal de sons (um som é apresentado e o ator deve, com seu corpo, representar o que mais se aproxima do som ouvido, na sua interpretação pessoal), exercícios de continuidade de frase (uma frase é apresentada e o ator deve continuá-la e concluí-la), exercícios de conversa em círculo (os participantes dão continuidade à fala do antecessor, em círculo, criando um texto ou uma fala) e a caracterização individual para conclusão do expectador (o ator escolhe uma idade e uma atividade laborativa para representar, em silêncio, apenas com a expressão corporal e o gestual, e os demais devem perceber a faixa etária e a profissão representada). Estes jogos possibilitam aos atores estímulo da criatividade, do reflexo, do improviso, da interatividade, da verbalização apropriada e da clareza de demonstração, elementos essenciais no consultório médico para construção da boa relação médico-paciente.
Estabelecida a aliança terapêutica, cada consulta que se segue pode ser definida como um conflito a ser resolvido. Haverá sempre dúvidas no uso das medicações, esclarecimento sobre efeitos colaterais e interações medicamentosas, confronto das informações leiga e médica causando modificações no tratamento, influência de familiares, limites financeiros, sociais e pessoais que necessitam ser discutidos e solucionados. Sempre serão necessários ajustes e adaptações. Esta “ação contínua” (o tratamento) requer do médico constantes atualização e interesse por seu doente e sua doença, valorização do paciente, clareza e humanização no atendimento. Uma luta contra a armadilha da repetição sistematizada.
No teatro, o que gera a ação é o conflito: enfrentamento de objetivos opostos. Existem, no teatro, três categorias de conflito: intersubjetivos, com o entorno e conflitos interiores. Estes mesmos conflitos ocorrem durante a consulta médica. A sucessão e solução destes conflitos, portanto, é que vão determinar um bom relacionamento e um “bom final” para os diversos atos do enredo (consulta médica, tratamentos continuados).
É importante para o médico saber colocar-se no lugar do outro: no teatro a ação análoga está no estudo dos personagens, do contexto social e histórico da peça teatral, nos ensaios submetidos à direção e, por fim, à representação. Nos cursos de medicina estimula-se pouco o conhecimento do doente, valorizando primordialmente a identificação da doença. Sim, o médico deve conhecer a fundo a doença, mas procurar conhecer mais a fundo o doente, pois cada doença tem em seu hospedeiro mudanças à sua definição teórica, seja física ou emocionalmente. E cada doente tem em torno de si personagens (família, cuidadores, amigos) que também modificam positiva ou negativamente sua forma de adoecer, bem como um cenário específico (a residência, o bairro, a cidade, a situação financeira) que determinam peculiaridades de manifestação de sintomas e de resposta terapêutica.
Em geriatria existe uma natural dificuldade em lidar com cuidadores e com familiares, que muitas vezes impõem ao paciente limites de tratamento que atendam somente às suas vontades, necessidades ou egoísmos. O médico deve saber identificar como é o meio em que o idoso está inserido, como é seu relacionamento com seus familiares e cuidadores, se estes restringem a manutenção de sua saúde ou cometem abusos e omissões que repercutem na condução de seu estado de saúde. Este exercício contínuo de conhecimento dos pacientes e familiares (personagens), do desenrolar de sua condição de saúde (o texto) faz do tratamento médico uma sucessão de conflitos a serem solucionados, exatamente como no teatro.
Os pacientes não vão ao consultório apenas em busca de diagnóstico e tratamento eficientes, mas também para saciar necessidades afetivas, expectativas e desejos. A cada consulta estas demandas são realimentadas, necessitando de “combustível” por parte do médico para se manter aceso o relacionamento. Ao ator o mesmo ocorre, pois é um desafio manter viva a encenação, já que o texto é o mesmo e diversos vícios e maneirismos devem ser combatidos, pois são percebidos pela platéia como ineficácia na atuação. Numa encenação fria e viciada, a platéia tende a deixar de enxergar os personagens e passar a ver os atores, deixar de escutar o texto e passar a estudar a vida pessoal do ator, o que é extremamente perigoso.
O Método propõe que o ator seja criador. O médico deve ser sempre criativo e solucionador. Assim, é indiscutível o valor da imaginação no processo. O ator é encarregado de dar vida ao personagem, de emprestar a ele seu corpo e emoções, materializar o projeto criado pelo dramaturgo. O médico deve manter vivo seu exercício profissional, pois o paciente percebe quando, do outro lado, existe uma pessoa mortificada, anestesiada, apática diante de todas as dificuldades apresentadas e toma sua decisão: protagoniza o relacionamento (modelo equivocado de relação médico-paciente) ou procura outro médico, com quem possa “contracenar” adequadamente em seu benefício.
No teatro, Stanislavski solucionou parcialmente este tipo de problema com o trabalho sobre os círculos de atenção. São exercícios que fixam a atenção durante um tempo sobre um determinado ponto, o que restringe ou amplia os centros de atenção. Desta forma, consegue-se lutar contra a dispersão e o distanciamento dos objetivos e manter-se a atenção criadora como parte da ação cênica.
No consultório é semelhante. Há uma tendência do médico, por achar que já conhece um paciente muito bem, a não dar mais importância à queixas, atitudes ou sinais que considera “normais” ou “próprios” deste. Entretanto, cada consulta deve ser encarada como uma revivenciação de todo o processo de auto-conhecimento e de conhecimento do outro, como se fosse o primeiro encontro (estréia). Exercícios de ampliação ou restrição do foco de atenção são de grande utilidade para manter vivo este relacionamento. Pois, de outra forma, o médico aparentará frieza progressiva diante do paciente.
É importante também manter o bom relacionamento com os familiares e cuidadores. Existe uma tendência do médico a relacionar-se apenas com “um dos galhos da forquilha”: pode cometer o erro de considerar apenas o que lhe é dito pelos familiares ou cuidadores, deixando que o idoso seja apenas um acompanhante figurativo durante a consulta (analogamente ao elenco de apoio da televisão). E pior, baseado no que ouve dos familiares, considerar apenas intromissivo ou não-importante tudo que o idoso diz durante a consulta, como se o idoso antagonizasse seus acompanhantes. Neste caso, em analogia ao que acontece numa cena teatral, seria como se o ator protagonista equivocadamente escolhesse os atores antagonistas para contracenar, em vez da proposta inicial de relacionar-se primordialmente com o ator coadjuvante. No teatro o resultado é catastrófico: perda da unidade de ação e confusão da platéia, que passa de participante inconsciente a crítico implacável. O mesmo acontece no consultório: o idoso perde o elo de confiança com o médico, pode ignorar o diagnóstico e sabotar o tratamento. Para auxiliar na correção deste erro comum, um jogo teatral é muito útil: o jogo da “conversa a três”. Neste jogo, três participantes atuam, sendo que apenas um deles é o centro da conversa (domina a demanda). Os outros dois conversam com o central sem interagir entre si. O central deve, então, dar atenção aos dois sem pressa, sem fazer perguntas, falando e ouvindo ao mesmo tempo. Os assuntos devem ser diferentes. O objetivo deste jogo é aumentar a capacidade de fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo e com a mesma eficácia, estimular a atenção ao ambiente e às pessoas e improvisar criativamente. Outro jogo de utilidade é o de “prioridade de socorro”: três participantes (A, B e C): “A” ouve pedidos de socorro de B e de C. “A” tem que decidir quem socorrerá primeiro. Não deve haver gritos ou contatos físicos neste jogo, que tem como objetivo estimular a criatividade da linguagem, estimular a imposição da presença e a capacidade de convencer.
É muito comum em geriatria o atendimento domiciliar. Em analogia ao teatro, ocorre a mudança de cenário, gerando estranhamento. Além disto, naturalmente o novo cenário invade o pensamento (novos conflitos com o meio). Como conseqüência, o médico tem prejudicada a segurança de estar em seu cenário familiar, com seus objetos de cena à disposição. É a perda do domínio do meio. Desta forma, o domínio do texto (saber médico) necessita de maior atenção. Além disto, outros elementos poderão influenciar sua propedêutica: pessoas novas (novos personagens), ausência de um ambiente favorável a um bom exame físico (ambiente mal-iluminado ou quente demais; exame físico na cama do paciente) e sintomas que exijam instrumental não disponível por não serem usualmente portados pelo médico.
Neste caso três exercícios teatrais são de grande utilidade: o dos “círculos de atenção”, “a quarta parede” e a “conversa com a cadeira”. Na “conversa com a cadeira”, o ator deve, em dois minutos, estabelecer uma história entre ele e uma cadeira. A história deve ter começo, meio e fim. O objetivo é a criatividade coerente, o improviso, a teatralidade e a expressão vocal com um objeto inanimado (analogia com uma pessoa desconhecida).
Exercitar círculos de atenção não requer nenhum jogo específico. Imagina-se semi-círculos a partir de si mesmo. O circulo maior vai até o fundo do teatro. O círculo menor vai até um objeto próximo de si. Podem ser criados diversos círculos. Quanto maior o círculo, maior a atenção dispensada pelo ator (devido à maior número de atores e de elementos de cena). Durante uma encenação, quando a tensão começa a atrapalhar, deve-se reduzir a atenção para um círculo menor, capaz de ser abarcado pela visão sem prejudicar a interpretação do texto e a vida do personagem. Isto é necessário, já que o ator vive uma espécie de solidão em público. O mesmo acontece com o médico, principalmente em ambientes novos (visitas domiciliares ou hospitalares).
No conceito da quarta parede, toma-se como base o palco italiano (fundo e duas paredes laterais). A quarta parede, portanto, é a platéia. O olhar para a quarta parede é confortante para o ator, pois devido à grande intensidade de luz, é incapaz de enxergar a platéia. Desta forma, mantendo-se alheio ao público, pode ter a sensação permanente – e segura – de que está ensaiando. Por outro lado, deve vencer o efeito do buraco escuro para que o trabalho avance. Exercitar a criação de quarta parede no dia a dia, principalmente em situações de exposição pública, pode ser útil para preservar a segurança, a criatividade, o domínio do texto e a eficiência (da representação, do atendimento médico).
Após o atendimento, o paciente faz uma avaliação geral de todo o serviço prestado. No atendimento geriátrico, os familiares e os cuidadores também tiram suas conclusões. Na análise de falhas e de acertos, tanto do médico quanto de sua equipe, o paciente forma sua opinião. Os familiares e cuidadores tentam influenciar o idoso e o idoso, por sua vez, antagoniza ou concorda com seus familiares. A partir deste ponto, pode decidir retornar ou procurar outro profissional ou ainda outras alternativas.
O médico deve evitar prepotência e arrogância, demonstrar sempre interesse, solicitar participação ativa do paciente, explicar tudo muito claramente, demonstrar segurança no atendimento e ter comportamento ético. O interesse em ouvir, entretanto, parece ser o fator determinante. E deve não apenas ouvir, mas prestar atenção às expressões faciais, corporais e gestuais (coreografia), o que revela diversas características do paciente. Deve também explicar detalhadamente o diagnóstico e o tratamento, deixando que o paciente escolha a terapia sempre que existir mais de uma alternativa. Deve optar sempre a opção terapêutica mais acessível, atualizada, em concordância com a situação do doente (social, familiar, econômica). Deve ter consciência dos limites da medicina e falar a verdade ao paciente na inexistência ou ineficácia de um tratamento. Deve estar disponível em situações de urgência e indicar o paciente a outro médico sempre que convier.
O relacionamento entre médico e paciente é, por si só, desigual. Mesmo que saiba algo sobre sua doença, o paciente precisa decidir se confia na capacidade e na conduta do médico. É um relacionamento que necessita do acordo entre dois pontos de vista distintos. É importante que o médico tenha plena consciência da situação pela qual seu doente está passando. Se não agir corretamente, o médico pode fragilizar ainda mais seu paciente.
No teatro ocorre algo semelhante: o ator deve buscar e analisar as situações nas quais se encontra seu personagem e mantê-lo vivo. A improvisação aparece no processo de busca deste personagem. Mudanças no elenco, no cenário, no teatro, tornam este processo muitas vezes doloroso para o ator, mas podem ser necessários para manter o espetáculo aceso e envolvente. O texto deve ser integralmente compreendido, e nenhuma dúvida deve pairar seja sobre vocábulos, unidades de ação, objetivos do personagem e dos outros personagens, cenários, contextos e ambientações.
Dominar exames precisos e procedimentos complexos, deixando de lado aspectos elementares da relação humana criam uma práxis deficiente. A relação médico-paciente é pessoal, íntima e deve ser baseada em confiança mútua, o que pode deixar de existir quando o médico assume postura defensiva, enxergando no paciente um potencial inimigo. Uma atitude distanciada serve como defesa nestes casos, prejudicando o relacionamento.
Da parte dos pacientes, a exigência do impossível, o desrespeito a autonomia profissional e aos limites de atuação, a exigência de exames e procedimentos desnecessários, a automedicação, bem como a insubmissão às prescrições e orientações médicas podem tornar o relacionamento impossível.
Em geriatria, o médico deve trabalhar no sentido de quebrar o conceito do velho não-autônomo, sem vontades, sem papel social e sujeito a determinações de familiares e cuidadores. Muitas vezes, a idéia do “velho inútil e dependente” é imposta pelos familiares ou cuidadores presentes na consulta, que desejam diagnóstico e tratamento de acordo com seus interesses, desinteresses ou limitações, ou ainda encobrindo maus-tratos. O médico deve reconhecer o tipo de idoso com quem está se relacionando, e criar dois tipos de relacionamento: um com o idoso em particular e outro com seus familiares.
Na graduação médica usualmente o aluno passa por três etapas. Após quatro períodos (dois anos) de matérias básicas (ex. anatomia, bioquímica, biofísica, histologia), o aluno passa à etapa teórico-prática por dois anos ou mais, dependendo do programa de cada faculdade. Nesta segunda fase ocorre o aprendizado da semiologia, além de noções das principais especialidades médicas. Por fim, o aluno passa pelo internato, etapa eminentemente prática, na qual aprofunda seus conhecimentos nas quatro especialidades consideradas básicas na medicina: pediatria, cirurgia, clínica médica e ginecologia-obstetrícia. Nesta última fase, além da prática hospitalar e em emergência, o aluno freqüenta ambulatórios em especialidades clínicas à sua escolha, o que pode despertar interesse para uma especialidade a ser escolhida na pós-graduação: residência médica, especialização ou aperfeiçoamento.
Nas escolas de teatro profissionalizantes (não será abordado aqui o conteúdo programático das faculdades de teatro e artes cênicas), o aprendizado é teórico-prático concomitantemente. Na rotina diária de aula, os alunos passam por aula teórica, seguindo-se fase de aquecimento corporal e vocal, relaxamento e, por fim, prática. Os exercícios iniciais são jogos teatrais, exercícios de mímica, coreografia, acrobacia, projeção vocal, maquiagem e figurino. A seguir vem a prática com o uso de textos, que são fornecidos com antecedência para leitura e encenação posterior, supervisionados por um diretor teatral.
Neste estudo não se propõe que o médico passe a ser um ator em seu consultório, nem use um disfarce, uma máscara de decência, heroísmo, virtude e amabilidade, pois isto constituiria uma fraude. Mas exemplifica-se como, através do estudo da prática teatral contida no Método criado por Konstantin Stanislavski, e através do auto-conhecimento, o médico tenha melhor desempenho profissional, atingindo a excelência na prática, tendo como base o bom relacionamento entre este e os pacientes.
O teatro é a imagem do homem. O ator é, entre os artistas, aquele que mais se sacrifica em nome do seu trabalho, pois o objeto deste é exatamente ele mesmo: seu corpo, sua voz e suas habilidades. Ao mesmo tempo em que o ator deve criar, ele deve consentir ser “manobrado”, coordenado por um diretor. Na construção de um personagem, o ator deve encobrir sua personalidade e seus papéis civil e social para dar vez ao delineamento típico da figura dramática, através de elementos de identificação, criação, ritmo, estilo, dotação de traços gestuais e psicofísicos, e de memória afetiva e riqueza espiritual. O objetivo do ator é basicamente dar partitura e vida ao personagem, para que o espectador se esqueça de que a pessoa do ator está no palco. Pois não apenas o ator persegue seu personagem, mas também a platéia, numa espécie de comunhão em que todos vivem apenas a condição humana do personagem. Em suma, o que o ator realiza é, de acordo com as circunstâncias dadas e a coordenação do diretor, a re-conversão da experiência humana, através da própria experiência e da própria virtualidade. Qualquer descontração, qualquer afastamento da realidade do personagem, pode ser fatal para o desempenho do ator, pois fará despertar na platéia novamente a atenção para o ator.
O médico, identicamente, tem como objetivo convencer seus pacientes de sua realidade humana e de suas habilidades. Os pacientes não sabem quem é o médico fora dali (verdade real). Mas no consultório, exigem dele uma identidade que traduza expectativas de segurança, confissão, confiança, suporte continuado e cura (verdade cênica). Depreende-se disto que o médico deve assumir um papel durante o exercício profissional e agir em nome dele. Deve deixar claro os objetivos de suas ações. Podemos, então, definir a consulta médica como sendo um material dramatúrgico (circunstâncias dadas) sobre o qual o médico atua e, através de metamorfose, atinge os objetivos seus (realização, diagnóstico correto, manobras terapêuticas adequadas) e dos pacientes (já citados). Para isto o médico deve desenvolver a habilidade de metamorfosear-se nos seus pacientes. Definiremos como metamorfose a capacidade de afastar-se de si e identificar-se com o outro, o que só é possível se um consegue conquistar sua identidade apropriadamente e desdobra-se para conhecer tudo que o cerca. E todas as vezes que um ser humano conhece bem o outro, aprende as diferenças entre si e os outros, terminando por questionar sua própria identidade, atingindo um estado criador e modificador sobre si mesmo e sobre os outros.
Baudrillard define bem esta metamorfose: “O roteiro é o mesmo na perseguição. Seguir o outro é apropriar-se de sua trajetória, é tomar conta de sua vida sem que ele o saiba, é desempenhar o papel mítico da sombra que tradicionalmente nos segue e nos protege do sol – o homem sem sombra encontra-se exposto à violência de uma vida sem mediações -, é livrá-lo desse fardo existencial que é a responsabilidade pela sua própria vida – simultaneamente aquele ou aquela que segue também fica liberto da sua, já que se compromete cegamente no rastro do outro. Maravilhosa reciprocidade aí ainda na anulação para cada um de seu ser próprio, na anulação para cada sujeito de sua posição insustentável de sujeito. Seguir o outro, tomar o seu lugar, fazer a troca das vidas, das paixões e das vontades, metamorfosear-se em lugar e no lugar do outro consiste talvez no único caminho para que o homem se torne enfim um fim para o homem. Caminho irônico, mas mais seguro ainda.“[29]
As técnicas e jogos teatrais contidos no Método Stanislavski, através do auto-conhecimento e da identificação e avaliação do outro, estímulo a criatividade, incentivam o poder de observação e de julgamento, induzem ao reflexo verbal criativo (improviso), trabalham a manifestação espontânea dos sentimentos, melhoram a percepção espacial e temporal, exercitam o espírito de cumplicidade, liderança e submissão, estimulam a desinibição, a autoconfiança, a determinação, a teatralidade coerente e estética e o espírito de cooperação. Auxiliariam o médico a reconhecer os tipos de relação médico-paciente e desenvolver relacionamentos adequados. Como resultados, teríamos melhor desempenho da prática clínica, rápida constituição da aliança terapêutica e fidelização da clientela.
A inclusão do Método Stanislavski no programa curricular da graduação seria de imensa contribuição para melhorar a performance profissional rumo à excelência, acompanhada de grande satisfação pessoal, já que une aprendizado à aprimoramento em diversos aspectos já citados.
Sugere-se a inserção do Método na graduação médica através de oficinas de teatro. As aulas poderiam ser semanais (uma) durante a semiologia, com cerca de quinze minutos de teoria, quinze minutos de aquecimentos vocal e corporal e uma hora de prática, sob orientação de profissionais de teatro. Um ano (dois semestres) de oficina seriam úteis para impedir a desumanização do relacionamento. A oficina seria um complemento à semiologia. Os jogos teatrais seriam adaptados a situações da prática médica e as pequenas dramatizações também envolvendo temas médico-hospitalares, até mesmo baseados em situações vividas pelos acadêmicos naquela semana. Situações reais serviriam de substrato para criações textuais e representações dramáticas criativas (vivência aplicada), nas quais os futuros médicos metamorfoseariam-se em pacientes, médicos, cuidadores e familiares. Desta forma, projetando-se no outro, certamente desenvolveriam formas diferenciadas e mais humanas de relacionarem-se entre si (interdisciplinaridade) e com os pacientes (identificação). A apresentação de esquetes ao fim do curso serviria de estímulo para o trabalho em equipe, para exercício de trabalho em equipe e como o exercício de improviso e dramatização.
Com o aprendizado e exercício do Método, ao médico seria também proporcionado aprender e desenvolver a projeção da voz, a pronúncia da fala de forma segura e determinada, preocupando-se com a intenção, com o vocabulário e o domínio do texto (saber), valorizar seus objetivos e os objetivos de seus pacientes, fornecer informações plausíveis e lógicas sobre as moléstias, comungando com eles através do uso racional da vivência e adaptando-se a diversas circunstâncias, usando a memória afetiva para improvisar nas mais diversas situações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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